Eixo 1: Transferência e interpretação
Isabel do Rêgo Barros Duarte
A relação incontornável entre transferência e interpretação leva a uma questão bastante repetida ao longo da história da psicanálise: o que vem antes, transferência ou interpretação? É preciso esperar a instalação da transferência para interpretar ou é justamente a interpretação que instaura a transferência?
No caso Dora, Freud “tropeça” com a transferência ao se deparar com o limite ou mesmo a ineficácia de suas interpretações, que não impedem a paciente de interromper o tratamento. Esse tropeço inaugura a função do psicanalista, diferenciando-o do médico que visa a traduzir os sintomas[1]. O que aparece aí, com a surpresa de Freud diante da transferência, é o aspecto de amor, de libido em jogo em uma análise.
O fracasso de Freud o leva, por um lado, à conclusão de que é preciso cautela, esperar a garantia da transferência para que a interpretação como decifração das formações do inconsciente encontre eco. Por outro lado, quando sua surpresa o faz ir justamente além do deciframento, o que aparece é o aspecto libidinal da interpretação que, por sua vez, é causa da transferência.
Em seu curso La fuga del sentido[2], Miller organiza os diferentes aspectos da interpretação ao longo do ensino de Lacan, tomando como base o conceito de inconsciente a que se refere em cada momento. Em um primeiro tempo, a partir de “Função e campo da palavra e da linguagem…”, trata-se do inconsciente interpretável, isto é, significantizável, passível de leitura e de tradução dos conteúdos recalcados. Em um segundo momento, tomando como base o Seminário 11, Miller aponta que aí Lacan inclui na relação entre inconsciente e interpretação a interferência da sexualidade. E, dado que a sexualidade, segundo Freud, só se realiza a partir das pulsões parciais, o que surge aqui na relação entre inconsciente e interpretação é o objeto da pulsão, o objeto a marcando a insuficiência e a não equivalência entre as formações do inconsciente e suas traduções. O objeto a, dando notícias do gozo presente na relação transferencial, teria um efeito de interferência e perturbação no que seria a interpretação ideal, aquela que faria corresponder ciframento e deciframento.
Temos então: primeiro, a interpretação como tradução do inconsciente e, segundo, a interpretação perturbada pela incidência da pulsão e da sexualidade. Vislumbramos, então, de um lado a anterioridade da transferência em relação à interpretação, e do outro o vetor oposto.
Aqui, nos serve prestar atenção a uma nuance importante: o que a instalação da transferência requer como condição seria mais precisamente uma “demanda de interpretação”[3]. Essa passagem da interpretação para a demanda de interpretação como condição da transferência tem o efeito de desidealizar a suposta intervenção exata que o analista deveria alcançar para pôr em marcha o dispositivo analítico. Ao contrário, a demanda de interpretação, neste tempo zero, não se dirige exatamente ao analista, que ainda não se encontra em sua posição, mas ao próprio inconsciente. A transferência se instalaria, então, quando o analista passasse a ser o destinatário dessas demandas.
Já podemos nos fazer algumas perguntas: como esse enlace entre interpretação e transferência aparece nos distintos casos e nos variados enquadres de atendimento (consultório ou instituições) e como essa relação inaugural orienta o trabalho de uma análise ao longo de sua duração.
Porém, não paramos aqui. Voltando a Miller em La fuga del sentido, ele agrega um terceiro tempo da interpretação no ensino de Lacan, tendo como referência o Seminário 20. Aqui, o que se sustenta é que, no nível da pulsão, não há Outro, isto é, há apenas as relações de objeto, que colocam em primeiro plano os aparelhos de gozo. Se no Seminário 11 se destaca o aspecto excessivo e perturbador da pulsão, aqui a pulsão se expressa enquanto sempre satisfeita, um circuito que se volta sempre sobre si mesmo. Isso sem dúvida produz dificuldades para a interpretação. Na verdade, neste nível, a interpretação se tornaria impossível, nos diz Miller, sem contar com o Outro que a sustentaria.
Diante dessa impossibilidade, o que poderia ser uma interpretação no nível do real? Uma interpretação como um despertar tal como ocorre nos pesadelos, diz Miller, a partir de um encontro com o real[4].
Essa pista nos ajuda a pensar os casos em que não se apresenta essa demanda de interpretação destinada a um Outro? E a partir daí outra pergunta: como contar com a transferência?
Interpretação como tradução sempre limitada, interpretação perturbada ou interpretação impossível. O que buscamos neste eixo, longe de elencar interpretações exatas e paradigmáticas, é pensar, nos diversos casos, como a transferência, na prática, se serve desses diferentes aspectos da interpretação.
