EIXO 2 – Transferência e paixões

Andréa Reis Santos

 

A transferência não é uma perturbação. É o coração do dispositivo[1].

Neste eixo pretendemos reunir os trabalhos que nos ajudem a pensar na transferência como o tipo de ligação que enlaça o sujeito em uma experiência de análise a partir do modo como Lacan articulou esse fenômeno às paixões.

Os primeiros casos relatados por Freud trazem notícias de que o fenômeno da transferência foi uma surpresa para ele[2]. Foi com Dora que Freud se viu forçado a “descobrir” a transferência, por ter se deparado com um afeto que o analista não sabia dominar: o amor. Depois, nos anos 20, houve uma segunda surpresa quando Freud e seus alunos se deram conta de que a transferência também podia assumir uma forma hostil.[3] Miller justifica essa surpresa dizendo que no início Freud pensava que a investigação que opera na experiência analítica devia ser uma investigação de puro saber, de onde se tratava de extrair uma verdade.[4] Ideia que de alguma forma colaborava para uma separação ou até mesmo uma oposição entre o mundo do pensamento e o campo dos afetos.

De lá pra cá muita coisa se movimentou nesse terreno. O próprio Freud faz um longo traçado através do qual conceitua a transferência como elemento estrutural da análise mobilizada pelos afetos do amor e do ódio[5].

Mais adiante, na releitura de Freud que o ensino de Lacan promove, o par freudiano amor-ódio é ressituado em uma estrutura ternária, que passa a incluir a paixão da ignorância. A paixão é o termo escolhido a dedo por Lacan, que tem a virtude de interpretar e subverter a oposição entre afeto e pensamento, forçando entre eles outro tipo de ligação, não de oposição, mas em forma de nó. Não por acaso essa estrutura tem relação com a trilogia lacaniana que enoda Real, Simbólico e Imaginário. Situar na estrutura do nó as paixões do ser é uma manobra de Lacan que permite esvaziar a ideia do ser como pura racionalidade em oposição aos afetos como lugar de uma animalidade arcaica. Com isso, fica em evidência o fato de que não há pensamento sem que haja a presença de um afeto, ou seja, a experiência de análise na prática não se reduz a uma investigação de puro saber. No coração da análise pulsam as paixões que sustentam o laço transferencial.

Por isso mesmo, Laurent diz que com essa forma de conceber a transferência a partir das paixões Lacan desloca o afeto de forma a “tocar no vivo dos psicanalistas”[6]. Ele nos lembra que todos os dias o psicanalista é confrontado com a densidade da experiência da paixão e que em sua prática cotidiana essa experiência é de uma “atualidade sempre nova”. Essa expressão nos ajuda a desfazer o equívoco de conceber a transferência somente como deslocamento de um afeto antigo originalmente endereçado a alguém do passado para a pessoa do analista[7].

O amor de transferência é tratado por Lacan ao longo de todo seu ensino e é no seu primeiro seminário, quando relê o caso do Homem dos Lobos, que ele introduz as paixões do ser[8]. Muito resumidamente podemos dizer que no chamado primeiro ensino o amor aparece como a via privilegiada de acesso ao desejo e ao inconsciente. Mais tarde, no O Seminário, livro 20[9] Lacan retoma a tríade amor, ódio, ignorância em outro contexto. Ele não se refere mais às paixões do ser, pois este sofre um deslocamento importante a partir da teorização do gozo. As paixões passam a se articular entre gozo e saber, mais do que entre sujeito e ser.[10]

Laurent fala desse novo contexto a partir da diferença entre paixões do ser – que equivalem às paixões da falta-a-ser, da alienação ao Outro – e as paixões da alma, ou do objeto pequeno a. Sendo as últimas ferramentas que nos ajudam a orientar a leitura daqueles sintomas tão mais frequentes na prática clínica de hoje que se apresentam nas manias, nas compulsões ou depressões, como paixões que paradoxalmente não passam pelo Outro. No entanto, não se trata de substituir umas pelas outras como chaves exclusivas de leitura, mas de saber como manejá-las em cada caso. Como diz Laurent: “Nós precisamos de todas as paixões, não deixamos nenhuma para trás, servimo-nos de todas”.[11]

Nestas Jornadas queremos conversar sobre como cada um de nós se vira com as variações das paixões quando elas sustentam o laço em uma experiência de análise, e também quando seus excessos fazem o laço se romper. Esperamos interrogar, a partir dos casos apresentados por vocês, como manejamos na prática o amor por aquilo que o analista vem a encarnar para um sujeito, ou o ódio, como paixão que aspira do outro o seu rebaixamento, a sua negação, ou ainda a paixão da ignorância que se situa no campo imaginário de uma suposição de saber no Outro, e que eterniza a busca de um saber capaz de dizer o gozo evitando com isso que uma análise chegue a seu termo.

 

 


[1] Miller, J. -A. El Banquete de los analistas. Buenos Aires: Ed. Paidós, 2010. pp. 25-27. p. 428. Lição de 15 de novembro de 1989.
[2] Freud, S. Fragmento de uma análise de um caso de histeria (Caso Dora). (1905). São Paulo: Ed. Autêntica, 2022. 160 p.
[3] Miller, J. -A. La experiencia de lo real en la cura psicoanalítica. Buenos Aires: Ed Paidós, 2024. p. 37. 427 p. Lição de 2 de dezembro de 1998.
[4] Miller, J. -A. El Banquete de los analistas. Buenos Aires: Ed. Paidós, 2010. p. 25. p. 428. Lição de 15 de novembro de 1989.
[5] Traçado que se inicia com “Estudos sobre a histeria” de 1985, passando pelos textos de 1912 sobre “A dinâmica da transferência”, “Recordar, repetir elaborar” de 1914; “Observações sobre o amor de transferência” de 1915, até os textos mais tardios como “Análise terminável e interminável” de 1937.
[6] Laurent, E. As paixões do parlêtre. Editora: Marcela Antelo. Trad.: Marcelo Veras, Marcus André Vieira, Romildo do Rêgo Barros, Sérgio Laia, Marcela Antelo e Fábio Leão Figueiredo. Salvador: EBP-BA, 2024. p. 21.
[7] Lacan, J. O seminário, livro 11. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1990. 279 p.
[8] Lacan, J. O Seminário, livro 1. Os escritos técnicos de Freud. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1983. 382 p.
[9] Lacan, J. O Seminário, livro 20. Mais, ainda. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1996. 160 p.
[10] Vieira, M. A. O ser da paixão. In: Leal, C. E.; Holck, A. L. (Orgs.). As paixões do ser. Rio de Janeiro: Contra Capa, 1998, v. , p. 75-90. Disponível em: < https://litura.com.br/wp-content/uploads/2023/06/O-ser-das-paixoes.pdf>. Acesso em: 30 de junho de 2025, às 14h.
[11] Laurent, E. As paixões do parlêtre. Salvador: Escola Brasileira de Psicanálise, 2024. p. 21.