EIXO 3 – A posição do analista: saber e objeto

Ana Lucia Lutterbach

 

A transferência na prática é o que presentifica o inconsciente.

O convite do analista para que o sujeito se entregue à associação livre, inaugura uma fala diferente da fala habitual impregnada de uma suposição de saber atribuído ao analista sobre o sofrimento do sujeito, seu sintoma. Essa fala que supõe um saber a advir produz uma proliferação de sentido, que surge como memória ou como surpresa, isto é, ao mencionar experiências recentes estas se associam a lembranças e ao contá-las podem aparecer significantes esquecidos ou imprevistos. Essa busca de sentido é uma tentativa vã de recobrir o insabido, tamponar o real.

Para que essa escuta seja diferente, o analista procura desviar sua atenção da compreensão, do sentido previsto e para tanto é indispensável o silêncio do analista, fazendo com que a sessão de análise não se restrinja a um diálogo. Esse dispositivo estabelecido entre a fala e o silêncio é o que permite uma escuta diferente, escuta que separa o significante do sentido intencional de quem fala e, assim, isola os significantes de seu sentido prévio. Escande-se a falação produzindo equívocos que abrem para sentidos inesperados e faz insistir a pergunta: o que isso quer dizer?

Essa busca de um sentido último jamais recobre o real, mas descortina nas brechas do saber, um gozo fora sentido. Verifica-se, assim, que não há sentido sem o gozo indizível que o acompanha. Nessa experiência, insinuam-se indícios do objeto de gozo que supostamente o sujeito foi para o Outro. Quando o gozo se introduz no saber, o analista como objeto externo torna-se um operador do qual o analisante se serve para deduzir sua posição de gozo. Este lugar do analista a serviço da operação analítica é o que Lacan chamou semblante de objeto.

Em francês, o termo semblant faz parte do discurso corrente. Lacan[1] vai elevá-lo à dignidade de conceito depois de pescá-lo da boca de sua neta quando esta tentava fazer a distinção entre o que “era de verdade e o que era semblante”. Em português, o uso habitual para semblante é o de um rosto, de face e um sentido menos usual, de aparência, fisionomia, aspecto. No entanto, para Lacan, semblant tem relação com aparência, mas não coincide com esta, também não é simulacro, mentira ou falsidade, nem artefato. Aproxima-se mais do parecer.

No O Seminário, livro 18[2], Lacan diz que a natureza está repleta de semblantes, como os meteoros. Aparições brilhantes e efêmeras, como o arco íris, gotículas de água suspensas e coloridas com as cores do espectro solar, que parece no céu como um arco multicor inapreensível. Como semblante do objeto a, o analista não identificado ao objeto mas como um semblante, tal como as gotículas suspensas do arco íris, é colorido pelo espectro do analisante, o objeto destaca-se na transferência e a fantasia pode ser construída e depois atravessada.

Em faire semblant, como na expressão savoir-faire o verbo fazer não indica uma ação do eu, mas uma posição. A única posição sustentável na transferência, pois o próprio objeto do gozo é inapreensível e só pode ser abordado como semblante. Como observa Lacan no seminário Ou pior..: “o analista não finge [fait semblant], ele ocupa a posição de semblante. […] O analista ocupa legitimamente a posição do semblante porque não há outra situação sustentável com relação ao gozo…”.[3]

Nessa perspectiva, a da transferência como Suposto Saber e como semblante, consideramos o inconsciente como discurso do Outro. É o inconsciente estruturado como linguagem e o que visamos é o recalcado. No final de seu ensino, porém, como observa Miller, Lacan, a partir de Joyce, nos apresenta o paradoxo de um sujeito sem o Outro, que falaria para si – a fala passaria a ser somente uma palpitação de um gozo que deixa o analista fora.

Miller indica que Lacan propõe, assim, passar da escuta do sentido à leitura do fora sentido. O que se escutaria seria o significado que produz mais sentidos, enquanto a leitura em análise, tanto do analisante como do analista, consistiria em manter a distância entre a palavra e seu sentido. Para isso, é necessário tomar a palavra em sua materialidade de letra.

Aqui, a ênfase recai sobre as ressonâncias da letra no corpo. Não se trata mais de lembranças, mas da constatação de uma iteração do gozo produzida pelo choque da letra no corpo e seus efeitos.

O analisante falando para si, se satisfaz com isso, pois o circuito da fala para si é também um circuito de satisfação. O analista estaria ali somente para permitir a esse circuito se fechar. Aqui, o inconsciente seria o discurso do Um sozinho. Neste caso, qual a posição do analista?

Miller nos convoca a responder esta pergunta a partir da prática. Este é nosso convite nestas Jornadas: partir da nossa prática para nos interrogarmos sobre a posição do analista nos diversos momentos da análise, em cada caso.

 


[1] Miller, J.-A. De la naturaleza de los semblantes. Los cursos psicoanalíticos de Jacques-Alain Miller. Buenos Aires: Paidós, 2005. p.10. Lição de 20 de novembro de 1991.

[2]Lacan, J. O Seminário, livro 18: De um discurso que não fosse semblante. (1971). Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009. p. 15.

[3]Lacan, J. O Seminário. livro 19 : …ou pior. (1972-1973). Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2012. p. 165.