Eixo 4 – Na prática: obstáculos e invenções

Tatiane Grova Prado

“[…] as únicas dificuldades realmente sérias

são encontradas no manejo da transferência.”[1]

 

Como usualmente acompanhamos nos textos freudianos, é a partir de um impasse na prática que Freud faz um avanço na teoria. Ao se deparar com o efeito de um elemento imprevisto[2] no caso Dora, Freud começa a jogar luz na relação do analisante com o analista e seus efeitos nos casos. A descoberta é a de que há um lugar que o analista passa a ocupar nas “‘sequências’ psíquicas”[3] do analisante, nos termos de Freud. Em outros termos, o analista é “revestido com os ornamentos da fantasia”[4] do analisante, o que quer dizer que se há diálogo do analisante com seu inconsciente isso se dá e é garantido pela presença do analista.

Após dez anos da formalização de seu ensino, Lacan institui o conceito de transferência como um dos quatro conceitos fundamentais da psicanálise e formula a expressão sujeito suposto saber como orientação nos casos em que se trata de uma pergunta sobre o desejo do Outro e de supor um saber no lugar do Outro. O analista é quem pode assumir essa pergunta[5] e, para que ela se sustente, há um laço pulsional que pode levar o analisante com frequência à transferência amorosa. Nesta, esbarra-se com os efeitos de fechamento da homeostase e da inércia típicos do discurso do amor, e a “solução” de Lacan seria, com o sujeito suposto saber, nos centrarmos na perspectiva de que haja a garantia, por parte do analista, de um saber em jogo ao qual chegar a partir do trabalho do analisante. Essa garantia funciona como promessa: fale tudo o que vier e, com a minha presença, chegaremos a algum não sabido até então. Não se trata da encarnação, por parte do analista, de uma autoridade que deteria um saber prévio. Mas, uma função graças a qual “[…] nós mesmos temos atravessado – e temos feito atravessar aqueles que nos confiam sua palavra –, sem muitos danos, as ondas do rio, no barquinho do sujeito suposto saber”[6].

Entretanto, se esse barquinho/operador que é o sujeito suposto saber se sustenta numa garantia simbólica de que o que for dito terá lugar no Outro, mesmo que com opacidades, e quando o Outro se esvanece? Dizendo de outra forma: e quando a neurose não é mais a norma? Neste mar de correntezas mais turvas, outros tipos de barquinhos/parcerias estão em jogo, assim como uma abertura às invenções por parte dos analistas em sua prática.

Se “o Outro bem edificado se esvanece no campo da clínica que nos interessa”[7], podemos investigar fragmentos em que não se trata de sustentar um lugar de um saber que virá, mas de verificar a possibilidade de novidades na parceria analítica. Nessas situações, caberia mais seguir[8] o que analisante diz e verificar quais modos operativos de seguir são esses. Em que situações e sob quais coordenadas podemos verificar modos de parceria do analista que possam acompanhar o paciente com suas próprias soluções singulares frente às disrupções de gozo? Como seguir o paciente com seu próprio fazer frente às perturbações em suas homeostases e estabilizações? Estes outros modos de parceria se estendem da psicose à neurose?

Os obstáculos e invenções que aí estão envolvidos não se localizam apenas no consultório do analista, mas se fazem presentes na prática clínica em instituições, sejam elas de saúde mental e no campo da saúde de forma geral, em hospitais, clínicas, entre outros, seja em instituições educativas com crianças, adolescentes, e em práticas interdisciplinares com outros profissionais, e nas mais variadas formas da psicanálise se fazer presente na cidade.

Miller aponta que Lacan deixou indicações em seu ensino para, com elas, “reinventar a psicanálise”[9]. Nas nossas Jornadas convidamos cada um a compartilhar conosco suas invenções frente aos impasses, fazendo avançar as indicações de Freud e de Lacan, assim como de nossos colegas do Campo Freudiano.

 

Referências
BASSOLS, M. “Las paradojas de la transferência”. Em: Rev. digital da EOL Virtualia, n. 29, 2014. Acesso em jun. 2025: https://www.revistavirtualia.com/articulos/135/virtualia-29/las-paradojas-de-la-transferencia.
DI CIACCIA, A. “La transferencia en el siglo XXI”. Em: Rev. El Psicoanalisis, Dossier Lo que no se sabe de la transferencia, n. 32, 2018.
FREUD, F. (1912) “Sobre a dinâmica da transferência”. Em: Fundamentos da clínica psicanalítica. Obras Incompletas de S. Freud. Autêntica, 2024.
___. (1914) “Observações sobre o amor transferencial”. Em: Fundamentos da clínica psicanalítica. Obras Incompletas de S. Freud. Autêntica, 2024.
MILLER, J.-A “A transferência de Freud a Lacan”. Em: Percurso de Lacan: uma introdução. Rio de Janeiro: Zahar, 1988. p. 55-71.
___. “Uma fantasia”, 2004 https://2012.congresoamp.com/pt/template.php?file=Textos/Conferencia-de-Jacques-Alain-Miller-en-Comandatuba.html
___. “Falar com seu corpo”. Em: Rev. Opção Lacaniana, n. 66. São Paulo: Edições Eolia, 2013, pp. 11-17.
LACAN, J. (1964) O Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
___. (1967) “Proposição de 9 de outubro”. OE. 2003.
LAURENT, E. “Disrupção do gozo nas loucuras sob transferência”. Rev. Opção Lacaniana, n. 79. São Paulo: Edições Eolia, 2018, pp. 52-63.
DO RÊGO BARROS, R; SELDES, R. “Preparatória para as XXXI Jornadas Clínicas da EBP-Rio e do ICP-RJ”. Em: Arquivos da Biblioteca, EBP-Rio, n. 19, 2025, p. 301-318.

 

 


[1] Freud, S. (1914) “Observações sobre o amor transferencial”. Em: Fundamentos da clínica psicanalítica. Obras Incompletas de S. Freud. Autêntica, 2024. p. 165.
[2] Miller, J. A. “A transferência de Freud a Lacan”. Em: Percurso de Lacan: uma introdução. Rio de Janeiro: Zahar, 1988. p. 61.
[3] Freud, S. (1912) “Sobre a dinâmica da transferência”. Em: Fundamentos da clínica psicanalítica. Obras Incompletas de S. Freud. Autêntica, 2024. p. 109.
[4] Miller, J. A. “Falar com seu corpo”. Em: Rev. Opção Lacaniana, n. 66. São Paulo: Edições Eolia, 2013. p. 12.
[5] Bassols, M. “Las paradojas de la transferência”. Em: Rev. digital da EOL Virtualia, n. 29, 2014. Acesso em jun. 2025: https://www.revistavirtualia.com/articulos/135/virtualia-29/las-paradojas-de-la-transferencia2014, p. 2.
[6] Di Ciaccia, A. “La transferencia en el siglo XXI”. Em: Rev. El Psicoanalisis, Dossier Lo que no se sabe de la transferencia, n. 32, 2018.
[7] Laurent, 2018, E. “Disrupção do gozo nas loucuras sob transferência”. Rev. Opção Lacaniana, n. 79. São Paulo: Edições Eolia, 2018. p. 55.
[8] Ibidem., p. 56.
[9] Ibidem., p. 54.